segunda-feira, 27 de setembro de 2010

cálido

Às vezes, na vida,
O mundo não é mais que um colo
E um par de olhos arregalados
A espera ansiosa, e o medo espantoso
O número chama, qualquer um será, 875
E os passos levam apressados à frente
Mas o corpo quer voltar
Ao cálido colo

Cavalo... cavalo... cavalo

Cavalo... cavalo... cavalo...
Quando a gente tem frio, em geral, se cobre.
Se tem sono, dorme, se tem fome ou sede, come ou bebe.
Se algo incomoda, nos afastamos...
Mas quando recebemos uma notícia assim,
não há para onde ir.
Simplesmente queremos estar em outro corpo,
em outra vida
Se vamos dormir, depois de inúmeras gotas de rivotril, dormimos.
Mas no dia seguinte acordamos e somos nós ainda.
E somos nós que padecemos. Queremos fugir da nossa pele, de nossos ossos
E só resta esperar a hora de tomar de novo rivotril
Cavalo... cavalo... cavalo...

Cavalo... e as placas na rua...
São só placas na rua,
não dizem mais que Pare,
Estreitamento de pista à esquerda,
Dê a preferência
Cuidado, pedestres
Acesso à Av. 23 de Maio
Hospital do Câncer...
A placa pode deixar de ser só placa
Pode ser também palpitação
protuberância no caminho
medo e dor...
Cavalo... cavalo... cavalo...

Deixemos o trânsito
Voltemos no tempo
e se o tempo não volta,
que seja na memória,
substrato do tempo,
argila mentirosa

fecunda letra

Um dia quis ter filhos...
Por razões absolutamente egoístas ou, talvez, egotistas, desejava ver em outro ser meus próprios olhos, meu próprio ser, alguém que pudesse “continuar-me”. Depois a vontade tornou-se hábito, desejava criar alguém, ter uma criança a quem pudesse ensinar algo e que na minha velhice pudesse me acolher e amenizar a solidão do fim. Com o tempo, a vontade não conheceu mais razões. Tenho pais incríveis, capazes de amar seus filhos com uma força e voracidade sem medida, capazes de fazer qualquer coisa por eles, pais que nasceram para muitas coisas, dentre elas para serem pais. Pais que mereciam ser avós. Mas agora me descobri estéril. Não é uma esterilidade orgânica, nada sei do meu sêmen, a não ser da sua cor, de sua consistência, é uma esterilidade da vontade. Hoje, por razões altruístas, não quero filhos. Não quero ver meus olhos tristes em outro ser, não quer ver meu próprio ser em outrem, alguém que pudesse continuar...